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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A VOZ



Mas que tom de voz!... Que coisa inebriante, suave, ao mesmo tempo sensual, era aquela voz. Samantha nascera assim. Desde pequena, já deliciava os ouvidos de quem a cuidava. A cada raro choramingo, ouvi-la era um prazer renovado. Tinha também um ouvido apuradíssimo, capaz de ouvir o cair de folhas ao chão. Quando iniciou seus primeiros passos, apresentou uma mania. Vivia na ponta dos pés. Quando menos se esperava, estava a menina caminhando na ponta dos pés. Isso levou sua mãe a procurar a opinião de um pediatra que, de pronto, lhe assegurou que a pimpolha seria “uma bailarina”. Não havia com o que se preocupar.

Já na escola, seus coleguinhas de aula cercavam-na para estarem próximos àquela voz. Ao ler suas redações, era ouvida com atenção pelos colegas não tanto pelo conteúdo, que, diga-se de passagem, era bom, mas pela voz, pelo tom mavioso que imprimia às palavras.

Assim, foi tornando-se adulta, já consciente do atrativo que sua voz encerrava. Diziam que ao telefone era imbatível. Tornara-se uma voz um pouco mais “caliente”. Imagine declamando um soneto de Shakespeare, articulando um “thou” usado pelo dramaturgo, o conhecido e atual “you”. Sua professora ia à loucura.

Dizem que até comprou um apartamento, só com contatos telefônicos. Apareceu, só ao final, para fechar o negócio.

Seus colegas de trabalho deliciavam-se com sua voz pelo telefone. As pessoas com as quais mantinha contato telefônico, e eram muitas, pois o serviço exigia, ficavam encantadas com aquela voz. Despertava em seus ouvintes uma grande curiosidade. Alguns chegavam a convidá-la para ir até seus locais de trabalho, pois queriam conhecê-la.

Mas nada disso a impressionava. Queria apenas continuar seduzindo por seduzir. Houve até uma vez que exercitou seus dotes, agora no canto, numa encenação de peça famosa de João Cabral de Melo Neto. Foi elogiada por colegas e pela professora, que a distinguiu com uma dedicatória num livro oferecido como brinde – “A uma cantora a se revelar”.

A verdade é que conseguiu fisgar seu marido pela voz, não pela beleza. A cada ligação, a atração crescia um pouco mais. Ao longo dos anos, essa parceria sobreviveu em grande parte pelos poderes dessa voz, que incendiava, acalmava, embalava, ponderava: que amava. Mas, como não se pode mandar NELE, hoje, Samantha está só.

Sabe que ter essa voz sempre foi uma bênção, nunca motivo de preocupação. Pois não é que hoje essa voz tem-se deparado com algumas situações insólitas! Fico a imaginar como Samantha reagirá a ligações reiteradas de pessoas que estão a necessitar de uma palavra amiga, de um incentivo, de um ouvir atento. Há até quem já diga que dorme melhor depois de ouvi-la. Por incrível que pareça, essa voz tem permanecido límpida, sonoramente doce, jovial, envolvente. Mas seu público já não é o mesmo. O que antes era brincadeira da sedução, hoje é a realidade da carência do outro. Deverá Samantha usar sua voz agora para confortar, não mais para seduzir?

Acho que é a hora do devolver. Devolver tudo o que de melhor Samantha recebeu. Tentar entender as necessidades do outro, ao ver-se nelas. Todos nós as possuímos. O tempo dela, de agora, exige reflexão, ponderação, compreensão, empatia. Samantha terá que exercitar também seus ouvidos. Ouvir as pausas, os silêncios. Ouvir quase o inaudível, que nem o som de sua infância, de folhas caídas ao chão. A voz de hoje, porém, é mais exigente, busca a alteridade, um sinal de maturidade.

E como sua voz continua sedutora, embora madura, mãos à obra.

Pois Samantha também está carente. Carente da voz do outro. Não importa qual o tom.

E nesta ciranda da vida, a qualquer compasso se habilita, pois é um “pé-de-valsa”, desde neném.