Uma parede de hortênsias adornava a janela do quarto. Belas flores azuladas também cobriam a parede lateral da casa, que se enfeitava ao longo de praticamente o ano inteiro. Tudo para contrastar com a cor da parede verde-musgo e com uma janela de cor verde-clara, parecendo mar. Vez por outra, apareciam algumas florzinhas cor-de-rosa, para ainda mais bonito ficar o conjunto.
Uma imagem fotografada pelo olhar ao longo dos anos. Registrada para sempre ficou. Tornou-se repetida em desenhos com paisagens que Aninha reproduzia, quando solicitada pela professora nas aulas de desenho. Seus desenhos de céus e morros verdejantes primavam pelos azuis e verdes intensos, embora as hortênsias não aparecessem. Restara apenas a combinação de cores e a sua intensidade.
Aninha e a Natureza sempre dialogaram muito bem. Embora citadina, a sensibilidade para o movimento seu e de outros seres a sua volta sempre esteve presente. Os sentidos aguçados sempre tiveram lugar na primeira classe de suas observações e sensações.
Como explicar o ouvido tão apurado a ponto de ouvir uma folha seca bater de encontro ao chão?
E os barulhos e sons facilmente percebidos e diferenciados por ouvidos tão despertos?
E o cheiro de terra molhada a prenunciar chuva próxima, detectado a tempo de correr a recolher as bonecas para lugar seguro?
E o constante colocar-se na ponta dos pés como se uma dança estivesse por iniciar-se a qualquer momento? O pediatra reconhecera, à época, que a tal menina seria uma boa dançarina, tranquilizando a mãe preocupada com este gesto habitual da filha. Tal ritmo à flor da pele seria fundamental nas aulas de música, que se sucederiam anos após.
E o que dizer da Mindinha?
Entre frutas, hortaliças e galinhas, ela, a Mindinha, sobressaía como a preferida da menina. De tão velhinha, um dia desapareceu. Ao que parece, foi entregue a uma vizinha para que não fosse sacrificada pela família de Aninha. Lá, deve ter se transformado em um suculento prato.
As emoções iam-se somando e capacitando Aninha ao enfrentamento com o inesperado.
E a Isabel, vizinha de cerca, com quem trocava aneizinhos que acompanhavam as balas azedinhas da época?
E a colmeia de abelhas, bem no fundo do pátio? Aquele zumbido que Aninha respeitava, não chegando próximo por cautela?
E o canto do galo junto à cerca do vizinho? Altissonante, esbanjando charme, com aquela crista bem vermelha, não deixando dúvidas de quem era o mandachuva por ali? Parecido com alguns humanos. Aninha até lembrou-se daquela música chamada Bicho Gente, do CD Arca de Noé, de Kleiton e Kledir, que diz:
“Todo mundo é um pouco bicho, todo bicho é um pouco gente, tem olho, tem nariz, tem dente, tem pai e mãe e até parente, tem amor que nem a geeente!”
E o que dizer da habilidade de andar de bicicleta de duas rodas pelo pátio, em meio a tudo isso?
E o jardim com rosas plantadas, que abrigava uma gruta com a imagem de Nossa Sra. Aparecida?
E a mãozinha que sentia a aspereza do salpique de cimento que revestia o poço?
E a figueira, que dava figo de verdade todos os anos, com um balanço bem ao lado que oferecia colo para Aninha, enquanto ela dava o seu para a boneca Mariazinha nanar bem devagarzinho?
Imagens, sons, cheiros, sensações: um universo real que se tornava lúdico a cada amanhecer.
Experiências que sedimentam lembranças, permitindo manter olhares sempre renovados sobre o que nos cerca. Tudo, a cada dia, será novo se o lúdico permanecer em nós. Ao que parece, a interação entre Aninha e todo o universo ao seu alcance continua capaz de fazê-la alçar voos para aquele outro, não visível, mas que a acompanha durante o sono daquela criança, que ainda persiste.
Emocionar-se com a melodia de uma sinfonia, ou com uma nuvem que desliza ao sabor do vento, é produto de sensibilidade despertada bem antes, ainda na época em que o olhar se detinha nas imagens oferecidas no seu entorno.
Neste conjunto de vivências, caberá aos pais fornecerem orientação sobre justiça, caráter, honestidade e demais valores necessários ao bem coletivo.
Daí a importância de que às crianças sejam fornecidos meios e situações vivenciais que, juntos, formarão uma soma valiosa, capaz de propiciar elementos de qualidade para o futuro que a elas pertence.
A rua poderá tornar-se menos perigosa se conseguirmos buscar no lastro de qualidade, cultivado na infância, os passos corretos para encontros que valham a pena.
Quanto aos elementos modernos de comunicação, caberá, novamente, aos pais a dosagem adequada, pois a interação pessoa/pessoa deverá priorizar o diálogo à frieza e ao automatismo das máquinas. Ainda não se inventou nada melhor do que o homem. Devemos continuar apostando em seu potencial humano, para que se torne mais humanizado a cada dia.
Um Feliz Dia das Crianças para nós todos que ainda conseguimos manter um espírito brincalhão: apesar de tudo.
E, agora, um haicai pra Aninha comemorar este já tão distante O PÁTIO, guardado na lembrança, mas ainda presente no seu universo lúdico: como se fosse hoje.
Bicho Gente – Kleiton e Kledir
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Amelia Mari Passos: "Tornar o cotidiano lúdico é uma tarefa e tanto." Uau. Gostei. Conheci teu blog. Bravo!
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